Catedral
O pior deserto é o da falta do Amor. Aqui eu não me refiro ao amor carnal; este é muito bom e importante. Existe, porém, um deserto interior que é o de não sentir amor, ou seja, de não se sentir amada. Esse traz um vácuo, um vazio, existe muita dor, a dor do abandono, da solidão. É como se, uma pessoa fosse o contrário de um farol. O farol emite sempre a luz para fazer com que os perdidos se achem. Alguém sem amor, isso foi assim para mim, num grande Tempo. Eu queria ser a luz, mas não tinha a luz e também não via ao meu redor. Eu me achava perdida e não via ao meu redor em quem eu pudesse me encaminhar como encontrar quem pudesse preencher aquele vazio existencial que me fazia sofrer. Na minha obra eu falo sobre como me soa falso, me soa superficial a palavra ‘carência’; ‘carência de amor’, costumam dizer por aí. Para mim, a palavra deveria ser uma só, a verdadeira: a falta de amor, o nada. Não sentia na minha existência o amor. O amor que me saciasse estava muito afastado de mim. O amor que me preenchesse, que me abastecesse estava muito longe de mim. Eu encontrara esse amor em Deus. Eu reencontrara esse amor na Mãe de infância esquecida no Tempo de criança.
Não. Eu não conseguira sozinho esse encontro com os salvadores da minha alma. Em minha monografia de conclusão do curso de Filosofia eu colocara escrito nas primeiras páginas, um dizer de Kierkegaard:
“O homem verdadeiramente fora do comum é o homem verdadeiramente comum”.
Colocara essa frase pensando no homem que me surgira no Seminário Maior da América Latina, durante o meu curso de Filosofia. Foi pensando nesse homem a frase ali colocada. O homem que conseguiu perceber uma alma humana. Aquele homem que compreendeu e aceitou a minha pessoa do jeito que eu era. Aquele homem simples que me surgira na Vida, naquele lugar sagrado para mim. Suas roupas despojadas, sua voz suave, sua escuta constante as minhas lágrimas constantes. Eram lágrimas que brotavam de uma alma tão sofrida e brotavam na forma de silêncio de um coração sofrido; uma voz, cujo som, era as próprias lágrimas. Os nossos passos silenciosos diziam muito para mim, sem nada falarmos muitas vezes, naqueles jardins do Seminário; naquelas estradinhas de chão batido, onde às vezes também caminhávamos nos horários disponíveis das manhãs por mim tão esperadas. Acima podíamos avistar deslumbrada a torre do Seminário. O som dos nossos passos pelos corredores imensos e o silêncio das nossas vozes fazia perceber que, simplesmente eu tinha alguém realmente ao meu lado me respeitava, me considerava pessoa. Eu pagara tantos anos psicoterapia e o que realmente eu precisava era um amigo verdadeiro; alguém para me ouvir. Eu recebera o amigo, como dádiva da Vida. O amigo que eu ficara sabendo mais tarde ser o meu terapeuta homem com barba do sonho que eu tivera, literalmente. Sem dúvida presente da Vida por minha Mãe amada, por meu Deus, pois somente Ele lê um coração necessitado de ajuda. O terapeuta da Vida. Fui “curada” com o seu amor. “Curada” com a acuidade do ouvir, da atenção, da doação, da gratuidade quando mais precisava. A minha bolha invisível da dor da solidão estourou e o universo se abriu. O que encontrara na Bíblia e dizia sobre o amigo verdadeiro ser um tesouro foi realmente assim para mim. Do amigo ao verdadeiro amor foi
inevitável. E... Nas primeiras páginas da minha monografia em outubro de 1992, eu ainda deixava:
“Entre as obras do homem que a vida humana se dedica a aperfeiçoar e embelezar, a mais importante é com certeza o próprio homem...” - John Stuart Mill
“De que te serve o teu mundo interior que desconheces? De que te serve teu desejo, que é esta estrela que nós apontamos, se o desconhecemos?" - Fernando Pessoa
Eu precisava muito do meu outro, na minha caminhada existencial; a caminhada continuara no Tempo. Precisava muito de um grande amor terreno que me ajudasse no Tempo para nesse Tempo o amor unido ao Amor Divino me envolver e não sentir o Tempo passar.
Eu passara a me fortalecer em Cristo Jesus na Eucaristia. Como desejar culpar uma mãe ou um pai de situações que estavam tão longe de cada um? Como culpar uma mãe e um pai e que, no Tempo, o meu Deus, Ele me dera as respostas, a sabedoria de chegar a ser uma filósofa e deixar uma tese e teoria de vida que deseja evidenciar a existência de um Mal que é o espiritual maléfico e de um Bem que é o espiritual divino e que, eles mesmos, os meus pais, não tinham noção dessa Verdade? Eu corri existencialmente para chegar até ela, a minha mãezinha terrena. Eu cheguei. Nós vencemos! Estou em paz por trazer a você toda a Verdade que você tanto buscou também, mesmo que não possa perceber fisicamente ou sentir o que eu desejo dizer. Na mentira surge a verdade. Na mentira se faz a Justiça divina. Alguém ficou zelando pelo amor que você queria. Eu vou um dia daqui ao teu encontro, com toda a certeza. Estamos ligadas espiritualmente no mesmo corpo de Cristo. Caminhei só, muito só; estranha aos olhos de alguns ou muitos, nos meus sofrimentos e sonhos, mãe querida e minha Mãe querida. Um templo num Tempo para no Templo se completar; a minha catedral interior naquele lugar sagrado para mim. Estranha e só... Estranha e só... Nunca portanto, estranha e só em Deus meu Pai Criador da Vida.
“Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha da vida,
sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou mistério.”
Lya Luft